Comunicar o que se vê não é uma tarefa ginasial
Pessoas pragmáticas costumam se achar superiores por suas ações sem jamais se questionar quem é o autor de suas idéias
Comunicar a própria experiência é um desafio para toda a vida. O êxito ocorre quando dois fatos ocorrem concomitantemente: a pessoa envelhece e sua capacidade linguística é talhada na escola dos mestres da escrita. Em outras palavras, o comportamento se desenvolve com a experiência humana, enquanto a capacidade de transmiti-la não fica refém das palavras limitadas pelaconsequências de dizê-las, o que exige a convivência com quem melhor soube usar as palavras conectadas com suas respectivas referências reais.
A crise na convivência humana surge da crise na linguagem e se manifesta por meio da própria linguagem, pois ela é o principal meio de ação dos seres humanos, possuindo um poder muito superior ao da ação física. A palavra é uma forma de ação muito poderosa e a ação humana é fundamentalmente “o falar”.
A incapacidade de comunicação entre diferentes grupos sociais ocorre quando um grupo não entende o outro ou cria uma visão distorcida dele, moldando-o à sua própria imagem e suposição, frequentemente distorcendo ou inventando o que o outro disse.
Para evitar essa confusão é necessário explicar que só há quatro partes principais da linguagem na sociedade, cada uma com suas características e implicações.
A linguagem da mídia, composta de chavões e frases feitas;
A linguagem das ciências, focada em experiências pragmáticas dentro de limites estreitos da experiência humana;
A linguagem da propaganda comercial e política, caracterizada por seu objetivo de induzir comportamentos, em vez de comunicar o que quer que seja;
E, em contraste com todas as anteriores, a linguagem literária, uma vez que se mantém viva através da produção constante de novas obras que aspiram à qualidade das consagradas pela tradição literária, preocupando-se genuinamente em transmitir a realidade sem qualquer submissão a grupos, conchavos, doutrinas etc.
Os jornais mantêm sua identidade de produto, limitando-se a narrativas que não proporcionam uma verdadeira abertura para a experiência real e concreta dos seres humanos. O exemplo das experiências atômicas é ótimo para ilustrar como as informações são muitas vezes divulgadas de maneira seletiva e tendenciosa, refletindo apenas o que interessa aos produtores de notícias e aos interesses militares, deixando a população em geral desinformada sobre eventos significativos e suas implicações. Era claro que usariam as experiências atômicas para fins militares, mas isso nunca fora dito. A falha da comunicação e a manipulação da linguagem para servir a interesses específicos afastam o leitor da experiência real e concreta, só para citar um exemplo.
A linguagem científica, no melhor dos casos, restringe o observador a comunicar uma camada ínfima da experiência humana sem jamais alcançar um horizonte de consciência mais amplo.
Os políticos, os vendedores de produtos e até alguns religiosos estão sempre tentando conquistar pessoas para a meta desejada. É puramente uma indução ao comportamento que consideram bom. Nada mais.
Todas essas três características anteriores ficam sujeitas a lugares comuns, cujo efeito psicológico baseia-se na repetição e automatismo, proporcionando uma experiência real limitada, incompleta e até fictícia.
As ações humanas decorrentes das outras linguagens (midiática, propagandista e acadêmica) são semelhantes às suas causas, ou seja, não comunicam nada. Uma vez que comunicar é descrever por meio de símbolos o que está na realidade, isso está restrito à tradição literária.
O que digo aqui é um pequeno resumo da aula de número 347 do Curso On-line de Filosofia do Prof. Olavo de Carvalho. Ele conclui que só o escritor, dentro das condições descritas acima, é um genuíno artesão da palavra e busca comunicar algo da realidade.
Todas as mudanças concretas (boas ou más) que impactam a humanidade são provenientes da linguagem. As boas decorrem da comunicação real — daí que tradição vem do latim tradere — é transmitir; as más, decorrem dessa interrupção de comunicação real, tornando os agentes reféns da imaginação.
Achar que ações humanas na política, eleitoreira ou não, em detrimento da tradição literária, valem mais por seus efeitos imediatos é desconhecer como surge a ação humana em si. Adão e Eva caíram por efeito de uma palavra enganosa. Foram igualmente reerguidos pela Palavra, que precisou se fazer CARNE para socorrer a nossa condição humana de acreditar em enganos abstratos.
Comunicar o que se vê não é uma tarefa juvenil. É uma tarefa impossível para políticos, acadêmicos e propagandistas. Só homens amadurecidos e com alto nível de domínio linguístico são capazes de fazer isso. Conviver com grandes escritores, vivos ou mortos, como dizia o Prof. Olavo, e a capacidade deles de serem verdadeiramente livres dará a você uma dimensão maior do que sua imaginação pode conceber.
Ótimo comentário. Essa desordem, em conceber a narrativa como realidade, é um dos maiores problemas da humanidade. Entender isso na integralidade, é uma tarefa, atualmente, para poucos. É difícil, árduo, implica em muito estudo, humildade e oração. Um abraço a todos. Deus abençõe.